Se deus me chamar não vou (Mariana Salomão Carrara) e as crianças solitárias


Eu venho aqui contar sobre este livro como um cientista que apresenta uma galáxia recém-descoberta. Compartilho esta resenha como quem sonha que voltou aos onze anos de idade. Trago-lhes uma obra de Mariana Salomão Carrara que se tornou uma das minhas favoritas: Se deus me chamar não vou. O título, em tom rebelde e imperativo, com "Deus" escrito em minúsculo, já expressa a complexidade da mente infantil — pequena e feroz — diante da estrutura sólida da sociedade. Ao retomar a lembrança lúdica da infância, pode-se dizer que era a "época de ouro". Mas será que ser criança também não aperta? Incomoda? Será que nossa angústia de viver só começa quando perdemos a inocência — ou ela já é construída a partir do simples ato de viver? E, ao traçarmos esse paralelo entre infância e envelhecimento (abordagem que Carrara utiliza no romance), podemos dizer que essas duas fases tão distantes compartilham dos mesmos dilemas? A fragilidade física que gera dependência do outro, a necessidade de um responsável, a sabedoria de uma vida vivida contrastando com a inocência diante dos tempos modernos, ou a descoberta de um novo mundo — que vai mostrando suas garras, cada vez mais, como um pântano de raízes selvagens e plantas carnívoras destruindo o belo jardim da infância. O quase início da vida e o quase fim dela. Aqui vamos ler o livro da Maria Carmem, e ela vai nos contar por que uma criança consegue ser mais solitária que um velhinho.


Quando somos crianças, choramos lágrimas que não sabemos de onde vêm, sentimos inveja — mas não por malícia, queremos receber amor, mas não por carência. Lidamos com crises para as quais ainda não temos maturidade ou confiança no tempo o bastante. Aqui, Maria Carmem, uma garotinha de apenas onze anos, muito alta e gorda, muito expansiva, já não cabe mais naquele apartamento em que vive apenas com os dois jovens pais. As páginas do livro contam a ideia da garota: ela escreveria um livro naquele ano em que fez onze anos. Sempre gostou muito da matéria de Português e queria viver da escrita. Escrever era como desabafar para a menina que não tinha amigos nem pais que a compreendessem. Seus pais, muito jovens, se amavam demais — e esfregavam sem pudor esse amor inalcançável e aceso diante dos olhos desesperançosos de Maria Carmem. É importante frisar que tudo é narrado e afunilado pelo ponto de vista emocional da personagem. Por ser uma criança, ela tende a adicionar um toque hiperbólico aos seus relatos — o que não tira sua credibilidade, mas ressalta de forma nua e crua o que seus sentimentos. Os pais de Maria Carmem são do tipo que fazem o que podem (e geralmente podem pouco). Parece não ter havido tanto planejamento quanto à criação de um filho, ou à adaptação de suas rotinas para oferecer à criança um ambiente mais estável. Tudo piora especialmente quando um e-mail enviado por Maria Carmem a um consultor financeiro da loja da família (que vende equipamentos clínicos para pessoas idosas) desencadeia uma situação fora de controle, que a faz afundar ainda mais em sua pequena solidão. Isso gera consequências graves, como certos hábitos intestinais que a menina adquire.


É interessante como Maria Carmem se vê como muito defeituosa em quase tudo, exceto pela intelectualidade — mas especialmente no que diz respeito à aparência e ao peso. E para nós, mulheres altas, esse sentimento é de fato um fantasma antigo embaixo da cama, como se ser alta, gorda ou ter qualquer tipo de imponência fosse uma afronta imperdoável à feminilidade. A menina admira muito a delicadeza e feminilidade da mãe, que ela espera ser sua maior aliada, mas que falha com a mesma em determinados momentos daquele ano. A relação entre mãe e filha, aliás, é bastante profunda. Sobre ser pequena e delicada como as outras meninas, Maria Carmem reflete sobre a delicadeza — e como não vê isso em si mesma, como se não fosse apta a ser mulher (quando digo "mulher", refiro-me ao papel social feminino, que é intrinsecamente ligado à delicadeza e à submissão).


Maria Carmem também fantasia bastante — como toda criança. Mas fantasia consigo mesma: com uma versão de si que é segura, imponente, poderosa. Em seus devaneios, Maria Carmem usa botas brancas extravagantes, performa e canta com um talento secreto diante dos coleguinhas que a ridicularizam na escola e impressiona a todos com seu poder. E eu achei isso simplesmente genial! A fantasia é mais explorada na infância, e para algumas crianças (pretas, deficientes, LGBTQ+, gordas, neurodivergentes), acredito que ela se personifique não em um cenário onírico, mas real — onde aquela criança é uma versão melhor e mais aceitável socialmente de si mesma. O que é triste.


A garota ansiava, diante de toda a situação vivida em casa, que alguém lhe desse alguma importância. Qualquer tipo de autoafirmação ou valorização era aceita — por mais prejudicial que fosse. Em certo momento, ela começa a sofrer bullying na escola, por conta de uma atitude impulsiva, e mais tarde por uma descoberta dos colegas. Quando o bullying cessa, ela sente falta de ser alvo dele, porque sente falta de receber atenção — de ser lembrada por alguém. E isso, francamente, partiu meu coração enquanto eu lia. Maria Carmem então começa a ter muito medo da morte — e talvez até de Deus, esse que ela questiona sem receio quanto à existência ou à influência (ou falta dela) em sua vida. Mas o medo da morte era o pior. Ela estava sempre tentando pensar em estratégias para driblar o fim, porque, para ela, a morte era o ápice da solidão humana. E ela não estava pronta para isso. Por isso, se Deus a chamasse... ela não iria.

Em suma, recomendo demais que todos vocês leiam, embora seja uma leitura com tópicos delicados, a Mariana Salomão Carrara soube dosar a mão muito bem para nos trazer um escrita flexível e fluida de se ler, além de uma história muito envolvente com uma protagonista complexa. Segue abaixo um dos meus trechos favoritos do romance:


"A vovô foi ficando meio bebê, mas um bebê pesado e enrugado, e difícil de lavar, e às vezes ela ria demais, à toa, depois berrava, sem motivo também, um bebê gigante, e eu fazia carinho no cabelo dela, mas quase já não tinha cabelo. Antes de ficar doente, ela era muito sozinha, daí algumas tardes minha mãe me enviava para fazer companhia pra ela, mas na verdade eu fazia solidão. As duas ali no sofá, quase no escuro, competindo qual solidão conseguia alcançar o teto. Eu acho mesmo que as crianças podem ser mais sozinhas que asa velhas." 


Sugestão de leitura semelhante: O peso do pássaro morto, Aline Bei.

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  2. li O peso do pássaro morto um tempo atrás e amei demais. acho mt interessante quando a história envolve crianças e quando exploram o lado complexo que é ser uma. já ouvi falar mt sobre Se deus me chamar não vou, tá na minha lista há mt tempo, sua resenha me lembrou dele

    beijinhos, nanaview 💌

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    1. Oie amor! Pois então aproveite essa oportunidade pra ler, garanto que não vai se arrepender.

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  3. Oi meu bem! Que resenha intensa. A parte em que você comenta sobre a fantasia da Maria Carmem com ela mesma, mais confiante e admirada, foi de partir o coração. Quanta criança cresce tentando se tornar alguém “aceitável” só pra conseguir ser vista, né? E esse trecho final… nossa. Que coisa mais dolorida e linda ao mesmo tempo.

    Um beijo enorme e parabéns pelo post"
    Ju's Reads 🌷

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    1. Oie! Tudo bem? A Mariana Carrara consegue de fato dar uma voz muito real a essa criança solitária e que fantasia ser alguém melhor, enquanto lia senti inclusive que a autora poderia ter se inspirado nela mesma quando criança para escrever o livro.

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  4. Oi Ayla! Acho que um amigo me recomendou essa leitura há uns meses, achei muito legal a sua resenha! Acho que é o tipo de leitura que você faz com calma por te levar numa jornada para além do livro, colocando em perspectiva coisas da nossa vida. Vou esperar um momento tranquilo para encarar essa leitura.

    Garota do 330

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    1. Quando tiver a oportunidade, apenas leia! Você vai adorar, e sim, é um daqueles livros que é interessante digerir e refletir devagar, mas eu mesma li tudo bem rápido ksksk é uma história que, de certo modo, também é divertida de se acompanhar.

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